CLARICE LISPECTOR

- Estou procurando,
Estou procurando.

Estou tentando entender.

Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem!

Aconteceu-me alguma coisa que eu pelo fato de não saber como viver vivi uma outra?

Tenho medo dessa desorganização profunda.

Perdi alguma coisa que me era essencial,
e que já não me é mais.

- O que eu falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa.

Capta essa coisa que me escapa.

Estou lidando com a matéria prima.

Estou atrás do que fica atrás do pensamento.

Essa coisa sobre natural que é viver.

Não sei se terei coragem de simplesmente ir.

È difícil perder-se
.










Muitas vezes antes de adormecer --- nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior --- muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho.

Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora tenho de ir para a minha liberdade. Entregar-me ao que não entendo será pôr-me á beira do nada. Será ir apenas indo, e como um cego perdido no deserto. Essa coisa sobrenatural que é viver. O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar. Essa coisa corajosa que será entregar-me, e que é como dar a mão á mão mal-assombrada do Deus, e entrar por essa coisa sem forma que é um paraíso. Um paraíso que não quero!












Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar á enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?

E porque não tenho uma palavra a dizer.

Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. a palavra e a forma serão tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.

E se estou adiando começar é porque também não tenho guia. o relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas.











 Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei. Por enquanto não sei: só ao me reviver é que vou viver.

Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu?

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordado não seria linguagem.












Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida.
O instante é semente de vida.

Quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz.
minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio.

A invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro.
Desde de já é futuro, e qualquer hora é hora marcada.
Estou lidando com a matéria prima.
Estou atrás do que fica atrás do pensamento.
Estou num  estado muito novo e verdadeiro,
curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal
a ponto de não poder pinta-lo ou escreve-lo.









Será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue
a uma pergunta sem resposta?
E depois, saberei como pintar e escrever, depois da estranha mas íntima resposta?
Ouve-me, ouve o silêncio...
O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa
capta essa outra coisa que me escapa...
venho de uma pesada ancestralidade
venho da dor de viver
e não quero mais.
Quero a vibração do alegre.
Um instante me leva insensivelmente a outro.
Entro lentamente na minha dádiva a mim mesma
esplendor dilacerado pelo cantar último que parece ser o primeiro.
É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras
ancestral caverna que é o útero do meu mundo e dele vou nascer.
Tenho medo então de mim que sei pintar o horror, eu, bicho de cavernas
ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e também o seu eco.
Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga,
acende e apaga...






--- Será que estou te dando uma idéia do que uma pessoa passa em vida?

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